Sunday, June 22, 2008

Conto

Torta de Tijolo
Quando a pedra rolou telhado abaixo e mergulhou na torta que D. Felícia levava pela calçada, todas as testemunhas lamentaram. Todos sabiam da categoria da confeiteira. E ver umas das suas tortas destruída assim era como se testemunhassem um verdadeiro assassinato.
- Quem jogou a pedra? - alguém perguntou, exaltado.
- É, quem foi o criminoso?
Todos olharam para cima. A janela do primeiro andar - era um sobrado - do edifício por onde D. Felícia estava passando encontrava-se fechada. Só podia ter vindo de lá, presumiram, sem sequer cogitar que ela podia ter rolado do telhado. A janela se abriu. Gumercindo, ancião célebre pelo mau humor, assomou à mesma.
- Que balbúrdia é essa aí embaixo?
- Mas tinha que ser, mesmo... Olha só pra D. Felícia toda respingada de torta de...
Esmeraldo passou o dedo no que sobrou da torta nas mãos da confeiteira e levou-o à boca.
- Olha só o que sobrou da torta de morango da D. Felícia, seu Gumer! Pra que fazer isso?
- Fazer isso o quê? E Gumer é a vovozinha, viu, seu maroto!
Bateu a janela depois de voltar para dentro do cômodo, contrariado. Se não foi ele, quem foi, então? Era o que todos indagavam. A pedra não poderia ter caído do céu... Poderia? Além do que, a dita era do tamanho de uma laranja!
Quanto a Felícia, depois de instantes de paralisia, com expressão aflita e atônita, começou a limpar o avental com um guardanapo que trazia no bolso. Limpou também braços, pescoço e rosto, ao ritmo de "ais" e "uis", gemidos de desolação.
- Não esquenta, não, D. Felícia.
- Como não, Esmeraldo? Era encomenda!
Esmeraldo segurou o que restava da torta - com a pedra cravada bem no meio - para a pobre mulher acabar de se limpar.
- Vai jogar fora?
- E o que mais eu poderia fazer?
Esmeraldo ainda cismava que aquilo era obra do Gumercindo e expressou sua suspeita à confeiteira, enquanto ela já tomava o caminho de volta para casa.
- Você a joga fora para mim?
- Pode deixar.
Enquanto a mulher se afastava, tentando ainda manter a cabeça erguida para não se mostrar ferida em seu ânimo, Esmeraldo comia as bordas ainda intactas da guloseima. Só quando deu por satisfeita sua gula é que prestou atenção ao pedregulho no meio do prato. "De onde teria vindo?", pensou. Matutou, coçou a cabeça... Só podia ter sido obra do velho Gumercindo, quem mais poderia ser? O aposentado já tinha "ficha corrida" no bairro: brigara com o dono do bar por causa de três centavos de troco que o comerciante lhe ficara devendo; já se desentendera com a Aurora, dona da quitanda - chegou a atirar um tomate na mesma - e quase chegara às vias de fato com o Arnaldo, da barbearia, em virtude de um fiado que o barbeiro não aceitou...
O jovem Esmeraldo parou à soleira e tocou a campainha. Duas vezes. Três. Na quarta ouviu os resmungos do velho Gumer vindo atender à porta.
- Não sou surdo, eh, pára de tocar isso aí!
- Senhor Gumer, precisamos conversar.
- Do que você me chamou? - o olhar fuzilante do aposentado intimidou o rapaz.
- Desculpe... Senhor Gumercindo.
- O que você quer?
A pergunta vociferada pelo velho foi o suficiente para o menino Esmeraldo empacar, perder a voz e, após um longo silêncio, gaguejar algumas sílabas.
- A pe-pe-pe...
- Quem?
- A pe-pedra...
- Que tem a pedra, rapaz?
- Que c-caiu na to-torta da dona Fe-fe-lícia.
- Deu para gaguejar agora, é? Não era você o bom de papo da rua? E o que tenho eu a ver com a pedra que "c-caiu na to-torta da dona Fe-fe-lícia"?
Irritado com o deboche, Esmeraldo recompôs-se e falou alto e reto:
- Foi o senhor que jogou, não foi?
- E eu tenho lá motivo para fazer isso? - respondeu Gumercindo após fitar Esmeraldo por segundos que pareceram horas ao rapaz, e já ia fechando a porta em sua cara, quando o jovem o impediu com uma das mãos.
- Quem foi, então?
Nisso estavam os dois quando irrompeu outra pedra do telhado do aposentado, quase acertando, mas por muito pouco mesmo, não atingindo Esmeraldo, que até sentiu o deslocamento de ar causado pela queda.
- Vai dizer que essa também fui eu?
- Mas então...
Esmeraldo atravessou a rua, indo para a outra calçada tentar enxergar quem ou qual era a causa das pedras que caíam. O sol batia naquela direção e o jovem teve de proteger os olhos com as mãos em cunha na altura das sobrancelhas. Pareceu-lhe ver um vulto no telhado, talvez gente, talvez bicho. Gumercindo também veio ver o que era.
- Tem alguém no telhado do senhor.
Gumercindo olhou para cima, protegeu os olhos dos raios solares e forçou a vista.
- Tem algum bicho lá em cima?
- Não que eu saiba.
Com um gesto da mão, Gumercindo pediu que Esmeraldo o seguisse e entraram na casa. Subiram para o andar de cima e, após o velho puxar uma escada, penetraram no alçapão. Removeram algumas telhas e colocaram a cabeça para fora. Outra pedra rolou. Passou do lado de ambos, vinda do ponto mais alto do telhado. Antes que virassem para ver onde vinha, dois gravetos compridos e articulados correram na mesma direção do pedregulho.
- Ora, mas vejam só!
Esmeraldo compartilhou do espanto do velho Gumer ao testemunhar a ave pernalta correndo telhado abaixo, tentando agarrar a pedra com o bico.
- Ei, o que é isso? - gritou alguém lá embaixo - sinal de que o pássaro não fora feliz no seu intento de agarrar a pedra.
Nesse ínterim, notaram que vinha outro daqueles pássaros voando rumo ao pico do telhado, onde havia algo que parecia ser uma chaminé mal acabada.
- São... cegonhas?
- É o que parecem ser, rapaz.
Eram cegonhas, preocupadas a fazer o ninho na chaminé sem uso. As pedras, na verdade, soltavam-se com o movimento dos pássaros na precária construção. O que era de se admirar, na verdade, era o desespero dos bípedes para evitar que as pedras caíssem do telhado, como se receosos de que acabassem por ferir alguém. Seria mais plausível imaginar que estavam interessados em proteger o ninho e a si mesmos. Mas... quem sabe.
Saindo para o telhado, Esmeraldo concluiu que seria de bom grado arrumar alguns pedaços de tijolos soltos que perigavam rolar pelo telhado e principiou a escalar a construção.
- Esses bichos vão te bicar!
Mas Esmeraldo não cessou a escalada, confiante que animais que, aparentemente, preocupavam-se com tijolos que despencavam do telhado também seriam capazes de distinguir pessoas com boas intenções.
A cegonha que correra atrás da pedra agora voava ao lado de Esmeraldo, mantendo distância suficiente para não oferecer risco ao rapaz. Esmeraldo notou tal atitude e surpreendeu-se. Chegou, por fim, ao topo. Pôde notar que mamãe cegonha estava aninhada sobre um único e precioso ovo.
- Só tem um ovo!
- Dá pra arrumar os tijolos?
Esmeraldo respondeu que sim e, com cuidado, lentamente para não espantar a ave, arrumou alguns pedaços de tijolo que estavam se soltando da chaminé, colocando-os de forma a dar mais proteção ao ninho.
- Acho que agora está legal. - disse Esmeraldo, descendo de volta até o buraco no telhado. Junto com Gumercindo repôs as telhas e voltaram ao térreo. Ficaram na entrada da casa à espera de alguma nova queda de pedra. Ali permaneceram por um bom tempo e nada ocorreu. Foi tempo suficiente para enredarem uma conversa sobre pássaros, a Natureza, vizinhança, construções mal acabadas e tudo mais.
Algumas semanas depois estavam de volta ao telhado, observando à distância a família de cegonhas que acabara de aumentar. Esmeraldo aproximou-se cuidadosamente, escalando o telhado de forma a evitar qualquer ruído e qualquer deslize. Pôde ver bem de perto o bebê-cegonha.
- Que maravilha, Seu Gumercindo! É mesmo incrível essa Natureza.
Gumercindo resmungou, chiou e criou coragem para, apesar da idade, rumar telhado acima.
- Se você pode, eu também posso.
- Tenha cuidado. E faça silêncio.
E ele até fez. Só que, ao chegar à chaminé, distraiu-se embevecido que ficou com a graça de mamãe e bebê-cegonha e pisou em falso. Teve que segurar-se na beira da chaminé para não cair para trás, no que Esmeraldo também ajudou. Porém nenhum dos dois foi capaz de segurar um fragmento que desprendeu-se e rolou telhado abaixo, despencando rumo ao chão.
Lá na calçada, defronte à casa de Gumercindo, passava D. Felícia levando outra de suas deliciosas tortas de morango.

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