Saturday, April 26, 2008

Sangue Negro



A crítica chegou a comparar Sangue Negro - raro caso de bom título em português, para o original There Will Be Blood - a Cidadão Kane, ou tratar o seu personagem central como o Randolph Hearst do petróleo (na obra de Orson Welles o magnata era do ramo jornalístico). Mas as semelhanças param por aqui: o enriquecimento de um homem ambicioso nos primórdios do século XX. E talvez por isso mesmo eu tenha admirado tanto o filme de Paul T. Anderson (não sou lá muito fã de Cidadão Kane...). Também, é claro, entre outros motivos, pela belíssima fotografia - a seqüência do petróleo jorrando e depois pegando fogo com a vastidão desértica ao fundo é de ficar gravada na memória - e por mais uma atuação, para dizer o mínimo, marcante de Daniel Day-Lewis. Ambos, por sinal, premiados com o Oscar. Ah, há também de destacar a trilha sonora de Jonny Greenwood: como em Magnólia e Boogie Nights, P. T. Anderson consegue novamente uma música marcante, por vezes tão lúgubre que algum desavisado pode esperar um thriller de horror e suspense ao invés de um drama épico.


A trama trata de assuntos sempre muito fortes: ganância, religiosidade, fanatismo, sentimento de família. Daniel Plainview começa sua trajetória em fins do século XIX, esburacando sozinho os desertos estadunidenses em busca de ouro e prata que, mais tarde, financiarão suas futuras investidas na prospeção do chamado sangue negro, ou o sangue da terra. Encontra poços, começa a progredir. Compra mais terras. Ao receber a visita de um jovem chamado Paul, que lhe traz uma indicação preciosa, Plainview pega seu filho de 10 anos e rumam a um lugar onde o óleo literalmente brota do chão. Uma das terras que despertam o interesse de Daniel pertence a Eli, um jovem pastor e sua família. Eli, irmão do desgarrado Paul, logo se dá conta que Plainview não veio para se dar ao prazer de caçar aves ou por melhores ares para seu filho. Não venderá suas terras a troco de ninharia. Eli vê a oportunidade de expandir sua congregação. Não só isso: almeja o controle do povoado através da conversão do próprio Daniel Plainview. De santo, Eli pouco tem, mostrando-se capaz de espancar a filha, por esta não orar, ou mesmo agredir o velho pai. O que se vê, então, é o confronto de dois homens ao mesmo tempo tão diferentes entre si e tão iguais pelas pretensões que carregam. Esse enfrentamento cru, hipocrisia e violência aflorando respectivamente no pastor e no prospector, talvez seja a razão pelo abandono da sala de projeção por uma meia-dúzia de espectadores na sessão a que assisti. Azar deles, não é para tanto. Antes da crítica à religião, há uma crítica ao indivíduo, a certas pessoas que a fazem (a fé religiosa) e aos que se recusam a ver certas verdades. Provavelmente seja isso que tenha mexido com aqueles que deixaram o cinema.


Sangue Negro não é o tipo de filme feito para a distração da platéia. Ele faz pensar. Não só em valores religiosos ou cobiça, mas também em valores familiares, claramente levantados pelo equilibrado roteiro que acompanha os personagens de Plainview e seu único filho, H. W., através de décadas. Mais como pano de fundo, ainda vemos o surgimento de uma das bases do imperialismo dos EUA, refletido ainda hoje nos eventos de sua política intervencionista. Mas o âmago de Sangue Negro, mesmo, está no indivíduo. Não é à toa que Paul Thomas Anderson é o diretor: exímio na régia de atores, ele tira mais uma interpretação digna do Oscar de Daniel Day-Lewis - anteriormente laureado com o prêmio por Meu Pé Esquerdo. Day-Lewis compõe um personagem forte tanto no caráter como no aspecto físico. A forma de falar - típica de um negociante convicto, audacioso, algo político - e o jeito de andar que dá uma falsa impressão de fragilidade... definitivamente, quem vê o personagem não vê o ator. Curioso lembrar que a festa do Oscar em 2008 premiou Marion Cotillard pela mesma capacidade de desaparecer no papel: em Piaf - Um Hino ao Amor, ela é Piaf, e não Marion. Paul Dano como Eli, por sua vez, tem atuação tão convincente que não é de se duvidar que tenha despertado a hostilização por parte de cristãos mais fervorosos. Como defeitos, poderia ser citada a longa duração (2h38) ou a aparência por demais jovem de Eli não convencer, e talvez alguns considerem o final exagerado. Mas os prós se sobressaem e fica uma obra inteligente, ousada e muito bem levada a cabo.

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